Causou grande comoção na classe contábil recente julgamento do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, divulgado pela imprensa, que considerou um contabilista como solidariamente responsável por multas tributárias aplicadas à instituição para a qual prestava serviços. A decisão tem a seguinte ementa:
TRIBUTÁRIO. EXECUÇÃO FISCAL. REDIRECIONAMENTO CONTRA TERCEIRO. CONTADOR DA EMPRESA. AUSÊNCIA DE ESGOTAMENTO DE MEDIDAS EXECUTIVAS CONTRA A PESSOA JURÍDICA OU DE DISSOLUÇÃO IRREGULAR. PARCELAMENTO DA DÍVIDA. RESPONSABILIDADE PESSOAL DO PREPOSTO POR ATOS DOLOSOS. DÉBITO RELATIVO A MULTAS. FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO QUANTO À RESPONSABILIDADE DO AGRAVANTE EM RELAÇÃO ÀS INFRAÇÕES COMINADAS.
1. O redirecionamento da execução fiscal em face do responsável é possível, independentemente da inclusão em CDA, desde que presentes indícios de quaisquer das situações descritas pelas normas que disciplinam a matéria.
2. O artigo 124, II, do CTN estabelece a responsabilidade pessoal e direta das pessoas designadas em lei. De outro norte, o Código Civil em seu artigo 1.177 estabelece a responsabilidade dos prepostos perante terceiros solidariamente com o preponente, pelos atos dolosos.
3. No caso, há relatórios fiscais em que são apontadas práticas contábeis supostamente eivadas de fraude no contexto das execuções fiscais movidas pela Fazenda Nacional contra a CELP/Ulbra. O campo das multas por descumprimento de obrigações acessórias e por apresentação de documentos supostamente eivados de falsidade nos procedimentos de compensação diz respeito exatamente às atribuições desempenhadas pelo embargante na entidade executada, na qualidade de contador.
4. A decisão agravada, ao reconhecer a responsabilidade solidária do profissional de contabilidade, no caso, considerou expressamente tratar-se de Certidão de Dívida Ativa relativa a créditos de multas isoladas e ex officio.
5. A existência de parcelamento posterior acarreta tão somente a suspensão da exigibilidade da execução e não sua extinção, não afastando a responsabilidade solidária do agravante.
6. O Superior Tribunal de Justiça ainda não firmou entendimento sobre a matéria, sendo pertinente destacar que os precedentes citados pelo embargante não se referem a multas, mas a impostos e contribuições.
7. Embargos infringentes providos.
(TRF4, EMBARGOS INFRINGENTES Nº XXXX)
Em determinada passagem do voto, consta a preocupante afirmação:
Em se tratando de multas por descumprimento de obrigações acessórias, relacionadas à entrega e transmissão de DCTF, bem como aquelas relativas aos procedimentos de compensação, há grande plausibilidade jurídica na tese que reconhece a responsabilidade pessoal e direta do contador, na medida em que tais procedimentos inserem-se diretamente no âmbito de suas atribuições.
Mas, examinando-se mais em pormenor o voto proferido pelo relator do acórdão, verifica-se que:
- apurou-se desvio de finalidade e de recursos de instituição sem fins lucrativos, implicando no cancelamento de sua isenção tributária;
- foram imputadas, no cumprimento de obrigações acessórias, práticas dolosas e fraudulentas aos responsáveis pela contabilidade da instituição;
- também se considerou que esses profissionais praticavam atos de gestão na entidade;
- por conseguinte, eles foram responsabilizados solidariamente pelas multas tributárias relacionadas às obrigações acessórias relativamente às quais foi constatada fraude.
Percebe-se, então, que o reconhecimento da responsabilidade fundou-se em fatos e circunstâncias bastante específicos (não cabendo aqui entrar no mérito se há ou não razão em se atribuir as condutas descritas no acórdão ao profissional), dos quais não se pode extrair uma tendência à responsabilização geral dos contabilistas pela simples falta de recolhimento de tributos ou pelo descumprimento de obrigações acessórias. De todo modo, como o processo em questão ainda está em andamento, a decisão não transitou em julgado.
Quanto aos dispositivos legais expressamente invocados pelo acórdão, constantes do Código Tributário Nacional e do Código Civil, passa-se à sua transcrição e análise.
Do Código Tributário Nacional, foram citados os arts. 124, II, e 135, II:
Art. 124. São solidariamente obrigadas:
[...]
II - as pessoas expressamente designadas por lei.
Parágrafo único. A solidariedade referida neste artigo não comporta benefício de ordem.
Art. 135. São pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos:
I - as pessoas referidas no artigo anterior;
II - os mandatários, prepostos e empregados;
III - os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado.
O inciso II o art. 135 responsabiliza os prepostos -- figura que alcança todos os que praticam, em nome da empresa, atos perante terceiros, caso dos contabilistas -- por atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos. Ato praticado com excesso de poderes é aquele que vai além dos poderes expressamente outorgados ao representante legal da empresa ou mandatário. Infração de contrato social ou estatuto também implica, o mais das vezes, a prática, pelo gerente ou administrador da empresa, de ato que ultrapassa as atribuições previstas nesses documentos. Hipótese mais problemática é a que diz respeito à infração da lei. Bastaria deixar de recolher o tributo ou descumprir obrigação acessória para atrair a responsabilidade tributária por “infração de lei”?
Por muito tempo, o fisco defendeu que o simples descumprimento de obrigações tributárias principais ou acessórias acarretaria responsabilidade dos gestores e prepostos das empresas. A prevalecer esse entendimento, o mero erro ou omissão do contabilista em lançamentos nos livros contábeis e fiscais, bem como no preenchimento de declarações, guias de recolhimento e outros documentos fiscais, seria suficiente para responsabilizá-lo nos termos do art. 135, II, do CTN.
Em alguns casos antigos, o Superior Tribunal de Justiça acolheu tal posicionamento, como se deu no julgamento dos Recursos Especiais 291.617, de 13.03.01, e 331.311, de 02.10.01. Mas, felizmente, essa interpretação foi rechaçada pela mesma Corte, que pacificou entendimento de que não basta deixar de recolher o tributo ou cometer omissões ou erros no preenchimento de livros e declarações. No Recurso Especial 1.101.728, julgado pelo rito dos recursos repetitivos, essa jurisprudência foi consolidada.
E não poderia ser diferente, pois, se a responsabilidade tributária de terceiros é tratada pelo CTN como exceção, não caberia estendê-la a qualquer caso em que houve simples descumprimento de obrigação a cargo do contribuinte. Mais que isso, seria necessário um descumprimento qualificado pela prática de atos dotados de maior grau de reprovabilidade, tais como: esvaziamento patrimonial da empresa; dissolução irregular; fraudes perpetradas em lançamentos contábeis; falsificação de documentos contábeis e fiscais; enfim, práticas tingidas da intenção (dolo) de ativamente enganar o fisco.
Pois bem, como já visto, a decisão aqui analisada justamente apontou indícios dessas práticas, dela não se podendo extrapolar uma tendência à generalização da responsabilidade do contabilista por multas tributárias.
Cabe, por fim, examinar-se o que dispõe o Código Civil acerca da responsabilidade dos contabilistas. Disso trata o art. 1.177:
Art. 1.177. Os assentos lançados nos livros ou fichas do preponente, por qualquer dos prepostos encarregados de sua escrituração, produzem, salvo se houver procedido de má-fé, os mesmos efeitos como se o fossem por aquele.
Parágrafo único. No exercício de suas funções, os prepostos são pessoalmente responsáveis, perante os preponentes, pelos atos culposos; e, perante terceiros, solidariamente com o preponente, pelos atos dolosos.
Assinale-se, primeiramente, que o art. 1.177 do Código Civil não trata de responsabilidade tributária, mas de responsabilidade civil, e, por essa simples razão, nem mesmo poderia dar fundamento legal para cobrança de tributos ou multas por descumprimento de obrigações acessórias. De todo modo, o preceito legal apenas considera o preposto responsável se este praticar ato doloso, ou seja, com a intenção de enganar, iludir, prejudicar o terceiro.
Pelo exposto, podem-se alinhar estas conclusões:
- o simples descumprimento ou atraso no cumprimento da legislação tributária não implica responsabilidade tributária do contabilista, quer pelo pagamento do próprio tributo quer por multas relacionadas a obrigações acessórias;
- todavia, se o contabilista dolosamente praticar ou auxiliar na prática de atos fraudulentos, aí sim poderá ser responsabilizado pelo fisco, especialmente no que diz respeito às multas por descumprimento de obrigações acessórias.
Leonardo de Paola, advogado, doutor em Direito e consultor da Fenacon
Fonte: SESCAPPR
Comentários
Postar um comentário
Compartilhando idéias e experiências sobre o cenário tributário brasileiro, com ênfase em Gestão Tributária; Tecnologia Fiscal; Contabilidade Digital; SPED e Gestão do Risco Fiscal. Autores: Edgar Madruga e Fabio Rodrigues.