A recente decisão do plenário do Supremo Tribunal Federal, promoveu, sob o fundamento das normas gerais de tributação, bem como dos princípios constitucionais tributários, a delimitação do campo constitucional de incidência da Cofins, reconhecendo a não inclusão do ICMS na base de cálculo da referida contribuição social.
A ganância fiscal acaba por resultar, não raro, no extravasamento da competência tributária, ensejando o acionamento do Poder Judiciário como garantidor dos direitos dos Contribuintes, como no caso em tela.
A Cofins constitui uma modalidade de contribuição social, amparada no artigo 195 da Constituição Federal — com a redação dada pela Emenda Constitucional 20/98 — que autorizou a imposição tributária, em relação ao empregador ou empresa, sobre: a) folha de salário e demais rendimentos; b) receita ou faturamento e; c) lucro.
Assim, temos que as contribuições sociais afetam a atividade empresarial em todas as suas etapas, abrangendo os recursos auferidos (tributação sobre o faturamento); os custos incorridos (tributação sobre a folha de salários) e, finalmente, quando a empresa consegue obter o resultado final positivo, apresentando lucro, novamente sofre a incidência de uma outra contribuição social (tributação sobre o lucro). Isso sem contar as outras espécies tributárias, como os variados impostos e taxas, por exemplo.
Nessa seara, fato é que as contribuições sociais oneram diretamente, a receita, o custo e o lucro da empresa, que inobstante dispender tais valores, não raro acaba ainda por suportar um custo adicional na concessão de benefícios aos seus funcionários, para suprir carências da prestação estatal em áreas sociais, como a saúde, por exemplo.
Constata-se, portanto, que as contribuições, de per si, já representam um encargo elevado, subtraindo um volume considerável de recursos, em razão de sua incidência em praticamente todas as fases da atividade empresarial.
Inobstante tal fato, a ganância da arrecadação acaba, como dissemos, por ensejar a criação de leis e interpretações fiscais que ampliam ainda mais a fatia de arrecadação, com a inclusão, no campo de incidência tributária, de recursos que não constituem base tributável, ou ainda, atingindo fatos que não são, e não poderiam ser, geradores de tributo, por expressa falta de previsão constitucional.
Como a doutrina de forma geral tem repisado, a Constituição Federal não cria tributos, mas tão somente autoriza sua criação, sempre por meio de lei. A lei, por seu turno e de igual forma, também não autoriza a criação de novos tributos não autorizados no texto constitucional.
Assim sendo, com base no permissivo constitucional, a Cofins foi instituída por meio da Lei Complementar 70/91, que estabeleceu sua incidência sobre o faturamento da empresa.
Destacam-se duas leis que estabeleceram as regras atuais da tributação pela referida Cofins, a saber: a lei 9.718/98, que estabeleceu a incidência na modalidade cumulativa — principal regra de tributação, até a edição da lei 10.833/03, que estabeleceu a tributação não cumulativa. Apenas para não ficar sem registro, anotamos que tal modalidade não cumulativa, em nosso entendimento, configura em si uma violação aos princípios e normas tributárias, na medida em que tal não cumulatividade não se opera de forma plena, com os limites abusivos impostos pela legislação ordinária.
Feito este breve escorço, importa destacar que a base de cálculo da contribuição foi estabelecida, nos termos do parágrafo 2º do artigo 1º da lei 10.833/03, como “o valor do faturamento”, sendo que a legislação criou uma interpretação “elástica”, a definir tal conceito como a totalidade das receitas auferidas pela pessoa jurídica, independentemente de sua denominação ou classificação contábil.
A lei 9.718/98, desde sua origem, estabeleceu como base de cálculo o valor do faturamento, também promovendo a ampliação desse conceito, que foi, inclusive, objeto de longa discussão e análise do STF em julgado anterior.
Observamos, contudo, que a lei 9.718/98 já fazia menção expressa à possibilidade de dedução da base de cálculo da Cofins, da importância relativa, tão somente, ao ICMS-ST, do (imposto recolhido pelo vendedor ou prestador de serviços na condição de responsável tributário de terceiros por substituição tributária), nada dispondo acerca do ICMS próprio, ou seja, justamente o imposto devido na operação comercial realizada pelo próprio vendedor.
Assim, de acordo com a discussão judicial, seria incorreto afirmar que a totalidade dos ingressos da empresa vendedora constituem receita própria, na medida em que o valor do ICMS, embora incida sobre a mercadoria ou serviços específicos, não pertencem a empresa, que atua como simples agente de arrecadação, coletando tais valores do comprador e os repassando ao fisco estadual.
Por conclusão temos que a imposição de exação fiscal em relação a tais valores extrapola os limites da competência tributária outorgada à União, pela Constituição de 1988, promovendo a imposição sobre valores que não se configuram como “faturamento”.
Nesse sentido foi o entendimento manifestado pelo ministro Relator Marco Aurélio Mello, assim consignado em seu voto: “O conceito de faturamento diz com riqueza própria, quantia que tem ingresso nos cofres de quem procede à venda de mercadorias ou à prestação dos serviços, implicando, por isso mesmo, o envolvimento de noções próprias ao que se entende como receita bruta. Descabe assentar que os contribuintes da Cofins faturam, em si, o ICMS. O valor deste revela, isto sim, um desembolso a beneficiar a entidade de direito público que tem a competência para cobrá-lo.”
Vale lembrar que a redação constitucional autorizava a incidência da contribuição tão somente sobre o faturamento. Com a Emenda Constitucional 20/98, esse campo de incidência foi alterado para albergar um conceito mais amplo, incluindo a receita da empresa. Contudo, inobstante tal alargamento da base tributável que, de per si, ensejou um aumento na arrecadação, pretendeu a União exigir a imposição tributária sobre uma riqueza que sequer pertence a empresa.
Aliás, sobre a distorção de conceitos jurídicos, foi bem lembrado o posicionamento do ministro Luiz Gallotti, no voto proferido no RE 71.758, afirmando que “se a lei pudesse chamar de compra e venda o que não é compra; de exportação, o que não é exportação; de renda, o que não é renda, ruiria todo o sistema tributário inscrito na Constituição” (RTJ 66/165).
Não é demais lembrar, inclusive, a própria disposição do artigo 110 do Código Tributário Nacional, estabelecendo que “a lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance dos institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias”.
Em breve síntese, com base em tais argumentos, o plenário do STF definiu seu entendimento, no mérito, reconhecendo aos contribuintes da Cofins, a possibilidade de dedução do ICMS na base de cálculo da contribuição.
No plano processual, o julgamento abrangeu longa discussão, notadamente considerando a existência de outro Recurso Extraordinário sobre o tema, bem como de ADC.
O Recurso Extraordinário 240.785 —objeto do julgamento — foi distribuído em 1998, época na qual inexistia o instituto da Repercussão Geral, não havendo, portanto, tal requisito de admissibilidade, que somente veio a ser instituído com a Emenda Constitucional 45, de 30 de dezembro de 2004, conhecida como “Reforma do Judiciário”. Dessa forma, tal questão foi uma das discussões preliminares, aventadas no caso em tela.
É de se observar, entretanto, a existência de outro Recurso Extraordinário, de número 574.706, distribuído em 2008, cuja Repercussão Geral já foi reconhecida pelo STF, ensejando, portanto, o enfrentamento da questão pela corte.
Diante das discussões de natureza processual, o plenário do STF manifestou o entendimento pelo prosseguimento do julgamento do Recurso Extraordinário, determinando, entretanto, a limitação dos efeitos da decisão às partes processuais, não abrangendo, portanto, todos os demais contribuintes não integrantes daquela lide processual.
Inobstante tal fato, a decisão judicial abre um precedente favorável aos contribuintes, na medida em que demonstra o posicionamento da Suprema Corte do país em relação ao tema, criando assim um cenário de segurança jurídica, que não pode ser abruptamente alterado.
Ademais, considerando que esse mesmo cenário é comum para diversas empresas que atuam no segmento de comércio, bem como na prestação de serviços de transporte interestadual, intermunicipal e de comunicação, as decisões judiciais não devem caminhar em sentido inverso, sob pena de — além de conflitar com o posicionamento da Corte Suprema — promover uma violação ao sagrado princípio constitucional da igualdade, ao admitir a imposição tributária distinta entre contribuintes que se encontrem em situação idêntica.
Por Anis Kfouri Jr.
Anis Kfouri Jr. é advogado, sócio do escritório Kfouri Advogados. Mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Mackenzie. Professor de Direito. Membro dos Comitês Jurídico e Tributário da Câmara de Comércio França-Brasil. Conselheiro Estadual da OAB-SP. Autor do livro Curso de Direito Tributário.
Fonte: Revista Consultor Jurídico via Tributo e Direito
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Compartilhando idéias e experiências sobre o cenário tributário brasileiro, com ênfase em Gestão Tributária; Tecnologia Fiscal; Contabilidade Digital; SPED e Gestão do Risco Fiscal. Autores: Edgar Madruga e Fabio Rodrigues.