No artigo anterior aludimos a distorções em tributos sobre valor agregado. A primeira, lá analisada, representa um descompasso entre o conceito desses tributos e a práxis operacional, ao negligenciar a variação de estoques, transformando tais tributos em IVAs impuros, abstratos, com apuração ficcional.
Agora, neste artigo, abordaremos outra distorção conceitual, embora salientando que esta ocorre exclusivamente com o IVA estadual, ou seja, só com o ICMS.
Distúrbios em Operações Interestaduais de Tributo Estadual
É sabido por todos que tributos sobre valor acrescido se ajustam melhor a sujeitos ativos nacionais, a governos federais, e que quando são de competência estadual, provinciana, apresentam vários distúrbios operacionais, sobretudo no que tange à partilha entre os entes da federação. Vejamos alguns desses problemas.
1. Em primeiro lugar, instala-se uma disputa sobre a proporção da partilha: quanto ficará na origem, quanto pertencerá à UF de destino? As rusgas sobre definição de alíquotas interestaduais vira-e-mexe vão parar no Congresso Nacional e nos tribunais. Atrapalham o pacto federativo e acirram os ânimos. O problema é que essas regras são estáticas, engessadas pela Constituição Federal, mas a economia é dinâmica, e as demandas sociais tendem a ser expressivas não apenas nos entes federados com piores índices de desenvolvimento econômico, mas também nos grandes, que o digam as periferias dos grandes centros urbanos.
2. Em segundo lugar, como o ICMS não é 100% destino, vale dizer, como a alíquota interestadual é diferente de zero, enseja a famigerada guerra fiscal, que também não sai das manchetes, do Congresso e dos tribunais. Quando entra na equação o consumidor final importando de outra UF, fenômeno que as compras pela internet têm turbinado, também ocorrem divergências, pois neste caso o tributo se torna 100% origem. E quando entram as empresas do Simples Nacional importando de outra UF, é outro bafafá, pois há quem exija o diferencial de alíquota às vezes já na travessia da fronteira, embora a compra não gere crédito e o débito do pequeno comerciante seja em função do faturamento, sem direito a compensação de créditos.
3. Em terceiro lugar, propicia evasões ilegais não só através da juridicamente discutível guerra fiscal, mas também da sonegação propriamente dita. Neste caso, três grupos de situações são emblemáticos:
a) Operações triangulares maliciosamente articuladas, nas quais se fatura a mercadoria para entreposto em determinada UF, na qual a fiscalização é de alguma forma mais tolerante, ou menos aparelhada, ou pouco presente. A mercadoria finge que vai, mas fica: é vendida no mercado interno da UF x, mas faturada como se fosse para além das divisas; por exemplo, para armazém na UF y, e volta para o cliente da UF x, com nota da UF y. Vai e volta a alíquotas menores, interestaduais; vai e volta, na maioria dos casos, apenas documentalmente, pouco ou nenhum valor efetivo se lhe agrega na UF turística. Isto ocorre ora sob risco calculado (quando se aposta na inoperância fiscalizadora da UF do bate-e-volta), ora sem risco nenhum, mormente quando o destinatário (da UF x) não aproveita o crédito, pois é consumidor final daquela mercadoria. Embora haja casos em que até mesmo o entreposto na UF y seja simulado, normalmente a situação é travestida de legalidade, o depósito existe nos documentos, a tributação é que é surreal. Esta modalidade também é conhecida como turismo documental de fronteira.
b) Quando o turismo documental de fronteira é fomentado pela UF do entreposto, na qual os pagamentos podem ser mitigados ou parcelados mediante incentivos da guerra fiscal (créditos presumidos, outorgados, financiamentos a perder de vista e sem ônus financeiro ou de mora sobre o débito tributário da empresa), temos uma variante sofisticada da triangulação mencionada no item anterior, pois neste caso os créditos são utilizados por quaisquer empresas da UF destinatária final das mercadorias, sem necessidade de contar com a inoperância da ação fiscalizadora da UF turística. A leniência, neste caso, é oficial. É a guerra fiscal em sua forma mais agressiva e ampliada. Costuma repercutir no Judiciário, pois é feita sem aprovação do CONFAZ.
c) Outra distorção grave é a geração de créditos frios numa UF para aproveitamento em outra, hipótese em que a UF de origem, por não ser atingida (eis que o fato econômico inexiste, apenas a sua simulação), não tem muito interesse em impedir a abertura e a suposta atividade do simulacro, demorando-se a declará-lo inidôneo. Assim, de um lado, deteriora-se a arrecadação da UF de destino, e de outro, depreda-se a concorrência no segmento da empresa que se apropria do crédito ilegítimo.
4. Em quarto lugar, o tributo concebido para ser nacional, quando estadualizado gera maior complexidade para a fiscalização e para as empresas. É que estas, sobretudo as do Sul e do Sudeste, quando compram muito em seu mercado interno (a 18%, como em São Paulo, por exemplo, ou a 17%, em outros Estados), e, ao mesmo tempo, vendem muito para outras UFs (com isenção para ZFM, a 7% para Norte, Nordeste, Centro-Oeste e Espírito Santo, e a 12% para o Sul e o Sudeste, exceto ES), acumulam créditos de ICMS em face das diferenças de alíquotas, dos valores absolutos e do peso relativo de cada situação.
Há casos de empresas comerciais que — embora operando com margens brutas expressivas, entre 40% e 80% — apresentam formação de créditos acumulados, ou pífios saldos devedores. Este fenômeno exige presença constante do Fisco local, pois tais estabelecimentos não apenas deixam de efetuar pagamentos mensais, como ainda pleiteiam a utilização dos créditos acumulados para pagar fornecedores. O trabalho fiscal sobre tais contribuintes e seus demonstrativos é extremamente complexo e trabalhoso, exige verificações em livros e documentos, muita acuidade, tempo e perspicácia, e tudo isto custa os olhos da cara para o Estado
Em síntese, também este grupo de distorções operacionais, decorrentes da partilha obrigatória entre os entes federados, no caso do ICMS interestadual, precisa ser enfrentado com inteligência e criatividade por uma Reforma específica, em face das evasões ilegais, legais e travestidas de legais que propicia, bem como pela complexidade que gera, pelos transtornos e custos para as empresas e para o próprio Estado.
No próximo artigo, iniciaremos a fase das propostas objetivas para simplificar o sistema tributário brasileiro, corrigir injustiças e distorções, fechar brechas evasivas, mitigar a influência do planejamento tributário estratégico sobre a perda de arrecadação, e criar ambiente favorável à expansão econômica e à harmonia entre os entes federativos.
Até…
Por Antônio Sérgio Valente
Fonte: Blog do AFR via José Adriano.
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