A igreja medieval era detentora dum poder absurdamente esmagador. Tanto, que o império papal chegou a controlar um terço das terras cultiváveis da Europa Ocidental, sendo assim o grande “senhor feudal” da sua época. Seus inquebrantáveis cânones eram sustentados por dogmas estabelecidos diretamente pelo poder divino, cabendo aos humanos uma cega e inquestionável devoção.
As regras vigentes num dado momento eram eternas e oriundas do texto bíblico. Portanto, claras como um cristal. Lá pelas tantas, algum tipo de rebuliço circunstancial obrigava determinada autoridade eclesiástica a promover modificações na doutrina, sendo o novo preceito uma representação fidedigna da vontade dos céus.
A persistente intervenção do imperador Oto I nos assuntos eclesiásticos levou o papa Gregório VII a instituir o celibato dos sacerdotes. Tal decisão concorreu para preservação do poder da igreja e a consequente defesa do seu patrimônio. Dessa forma, o celibato passou a ser algo natural e sagrado, como se tivesse nascido junto com o catolicismo.
O instituto do matrimônio, bem como a ordem centralizadora de Roma eram causas primárias da fé cristã. Mesmo assim, o Ato de Supremacia do parlamento inglês quebrou essa pedra angular numa só tacada. A nova doutrina estabelecida pelos céus permitiu o segundo casamento do rei Henrique VIII e ainda lhe conferiu o título de Chefe da Igreja Cristã. Consequentemente, os opositores dessa nova ordem foram executados por violação da sacrossanta crença recém-estabelecida.
Assim como acontece na dimensão religiosa, carecemos também de uma doutrina objetiva no sistema tributário. Precisamos ser convictos da solidez do terreno em que estamos pisando e ao mesmo tempo é fundamental que tenhamos em mãos um mapa normativo bem desenhado. Especificamente, no caso brasileiro, a Constituição Federal e o Código Tributário Nacional deveriam ser vistos como balizadores capazes de conferir um grau mínimo de segurança jurídica no campo tributário. Não é bem o que acontece. Na realidade, os nossos princípios tributários mais se parecem uma colcha de retalhos cheia de buracos e indefinições. Por isso é que nos momentos de impasse tais princípios mais atrapalham do que ajudam a pacificar conflitos normativos. Pior ainda, todo o nosso sistema jurídico é frágil. Isso ficou bem claro no episódio do Mensalão, que mostrou o quão vulneráveis são os nossos fundamentos jurídicos diante da força de certos grupos políticos.
Outro fato preocupante é a prática recorrente do poder executivo, de mandar pras cucuias determinados fundamentos normativos ao criar ou majorar tributos. Esse tipo de procedimento é bem a cara daquele governante desprovido de formação educacional mínima para ocupar cargos públicos relevantes. O enredo é sempre o mesmo: Quando o dinheiro passado por diversos filtros propinolísticos não é suficiente para a execução de obras eleitoreiras, cria-se da noite para o dia uma maluquice normativa capaz de gerar fundos suplementares ao erário. Em seguida, joga-se no peito dos doutrinadores a responsabilidade de “legalizar” a bandalheira. Paralelamente, os mais eruditos juristas e pensadores começam a construir uma aura divina em torno da flagrante ilegalidade tributária. Obviamente, tanto esforço não convence a ninguém, mas mesmo assim fica garantida a sucessão de espetáculos demagógicos materializados nas decisões administrativas e judiciais.
Esse quadro dantesco pode ser resumido da seguinte forma: Legisladores e juristas das mais altas castas constroem lindas estruturas conceituais, perfeitamente alinhadas com as melhores práticas adotadas nos principais sistemas legais do mundo. Em seguida, como um elefante desengonçado na loja de cristais, os insensatos comandantes do governo resolvem detonar essas ditas estruturas conceituais. Foi assim com a EC 3/93, que virou pelo avesso o conceito de Fato Gerador ao constitucionalizar o regime de Substituição Tributária do ICMS. Quem acessar a Seção II do CTN pode contar 50 vezes o termo “revogado” nos seus sete artigos. Isso dá a dimensão do quanto sofre o pobre do ICMS nas mãos do legislador. E olha que a Seção II do Código Tributário Nacional é apenas um guia orientador das 27 legislações estaduais que regulamentam o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços. Ou seja, os princípios fundamentais do ICMS já foram revogados 50 vezes. Pode-se considerar tanto mexe e remexe de princípio fundamental? Os desarranjos se sucedem, como o emaranhado caso do Finsocial/Cofins, taxa de internamento da Suframa e vários outros mais.
Tanta maluquice faz a delícia da vida dos advogados e ao mesmo tempo promove um clima de terror nos tribunais, entupidos até o teto de ações tributárias. Assim, desprovidos de princípios tributários mínimos, somos obrigados a dormir, acordar, almoçar e jantar com a insegurança jurídica grudada no nosso cangote. E a balbúrdia generalizada só tende a crescer com o passar dos anos.
O comediante Groucho Marx já dizia: “Estes são os meus princípios. Se você não gostar deles, eu tenho outros”.
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Fonte: As Crônicas do Reginaldo.
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