O Brasil tem se esmerado em promover o desmantelamento de seus tributos sobre o consumo. Guerra fiscal, substituições tributárias, benefícios fiscais, reduções de base de cálculo e dezenas de outras heterodoxias desembarcaram por aqui e criaram raízes.
Os impostos do tipo IVA, apesar de terem pouco mais de meio século de existência, se espalharam pelo mundo e atingem 75% da população mundial. Respondem por 25% de toda a arrecadação de impostos do mundo. Por conta disso, há suficiente informação sobre a melhor conformação de um IVA típico. Neste artigo, pretendemos relembrar a nossos administradores das melhores decisões envolvendo impostos como o ICMS, especialmente neste momento em que todos parecem estar absolutamente perdidos.
O melhor IVA é o de competência federal, ainda que os recursos sejam distribuídos entre os entes federativos. É o caso da Austrália, que tem um IVA bastante recente de competência federal, mas com recursos distribuídos para os Estados. O IVA australiano, por ter sido instituído no ano 2000, quase não apresenta os problemas típicos dos verificados em outros países. O Canadá tem uma situação parecida com a nossa, em que coexistem IVAs estaduais e federal. O conflito federativo é resolvido de forma muito mais harmônica do que a nossa, onde optamos por instituir uma guerra.
Nunca se pode esquecer de que o IVA é imposto sobre o consumo. Logo, a boa prática veda a tributação das exportações e das máquinas e equipamentos. Alguns países tributam as máquinas, mas devolvem o crédito. No entanto, importantes países impõem restrições ao crédito na compra de ativos. No caso do ICMS, o crédito só é devolvido de forma parcelada. Na China ainda é pior: o crédito de ativo é vedado, como já foi no Brasil. Além disso, a opção, quanto ao crédito, pelo critério físico em oposição ao critério financeiro para muitos afasta nosso ICMS da classe dos IVA. As restrições ao crédito de material de uso e consumo são retrato desta opção.
A maioria dos países do mundo opta pelo critério financeiro. Com esta opção, todas as compras efetuadas por um contribuinte relacionadas às atividades da empresa dão direito ao abatimento posterior, independentemente de integrarem os produtos produzidos ou serem consumidos no processo produtivo. IVAs que obedecem ao critério financeiro oferecem simplicidade às atividades da administração tributária e reduzem o contencioso fiscal, visto que, no caso do ICMS, o direito ao crédito é uma das maiores fontes de disputas entre fiscos e contribuintes.
Os IVAs implantados mais recentemente abrangem tanto o comércio de mercadorias como o de serviços. A colocação dessas atividades sob a incidência de um único tributo aumenta as garantias do respeito à não cumulatividade do imposto. Isso equivaleria, no Brasil, a abrigar as atividades previstas na lista de serviços do ISS sob o cobertor do ICMS. A unificação do imposto sobre mercadorias e serviços é, também, instrumento de combate à sonegação na medida em que cria mais um vínculo entre as empresas, o que se revelou importante para o desenvolvimento de economias sob ação do IVA.
Dois métodos de apurar o valor agregado são mais comumente observados no mundo: o primeiro é similar ao encontrado em nosso ICMS, em que o crédito é tomado a partir do valor destacado no documento de entrada; no segundo, o cálculo decorre de aplicação da alíquota sobre a diferença entre os valores de saídas e entradas. O primeiro método é o mais comum e ambos oferecem resultados similares.
Nos primeiros IVAs implantados havia muito cuidado com o estabelecimento de alíquotas diferenciadas de acordo com a essencialidade dos produtos. O IVA da França adotou alíquotas diferenciadas que foram se reduzindo com o tempo. Hoje há apenas três alíquotas, sendo a menor delas de 2,1%. A alíquota mais baixa aplica-se apenas aos jornais e aos medicamentos. Há alguns poucos itens sujeitos à alíquota de 5,5%, sendo o restante dos produtos sujeitos à alíquota de padrão de 19,6%.
Os países que implantaram IVAs nos últimos 20 anos preferiram estabelecer alíquotas únicas, como é o caso da Austrália: qualquer produto ou serviço é sujeito à alíquota de 10%. Países nórdicos também seguiram o caminho da alíquota única para todos os produtos (a da Noruega é de 25%). Isso simplifica o controle do fisco sem prejudicar o contribuinte de baixa renda, conforme indicam até mesmo estudos publicados no Brasil.
Bernard Appy recentemente publicou artigo em que identifica quem se beneficia das reduções de base de cálculo da cesta básica. Para surpresa geral, para quase todos os alimentos os benefícios concedidos são mais vantajosos para os “ricos”. Com base nessa premissa, ele, que participou do Governo Lula, defende que é mais adequado fazer distribuição de renda via orçamento (leia-se bolsa-família e assemelhados) do que por meio de tributos. Além disso, a eliminação desses incentivos contribuiria muitíssimo para o aumento da transparência e, consequentemente, da cidadania.
São raríssimos os países que optam pelo cálculo do imposto por dentro, situação em que o imposto está embutido no preço da mercadoria. Esta prática é menos transparente e esconde do consumidor a carga tributária real.
Substituições tributárias só são observadas em países da América Latina e da África. Em quantidade de produtos, é provável que só na Argentina a ST é mais abrangente do que o Brasil. A ST é considerada grave distorção do IVA, visto que uma das razões do sucesso deste tipo de imposto é a vinculação entre os contribuintes por meio da transferência de crédito. A ST transforma o ICMS em tributo monofásico, situação em que os ganhos com a sonegação são mais vantajosos.
Para muitos, é impossível fiscalizar o varejo em razão do grau de desenvolvimento de nosso país, que favorece a informalidade, e devido ao grande número de contribuintes nesse setor. Pois uma das grandes razões do sucesso do IVA é justamente se adaptar bem à informalidade, visto que as operações de débito e crédito acabam por empurrar o varejo para a formalidade. O IVA é cobrado em toda a cadeia de produção e consumo. Assim, se parte do imposto for eventualmente for sonegado no final da relação de consumo, parte significativa dele já terá sido paga. A boa resposta das economias informais ao IVA é utilizada por alguns autores como explicação para o incremente no crescimento do PIB nos países que adotam o imposto. Reformulando: países que adotam o IVA, esse mesmo com débito e crédito, percebem crescimento do PIB acima da média de outros países, implicando, segundo alguns estudos, ganhos de até 0,5% ao ano somente em razão da adoção do imposto. É evidente que podemos relacionar a nossa dificuldade de crescer, também, à imensa confusão em que se transformou nosso ICMS e os demais impostos assemelhados.
Com a evolução do imposto e com a clareza de que o IVA não passa de um imposto sobre o consumo, a maioria dos países optou por não fazer incidir o imposto nas transações entre contribuintes situados estados ou províncias diferentes, deixando toda a tributação para destino, onde a mercadoria, de fato, é consumida. A Europa migrou definitivamente para esse modelo em 1993, o que resultou no fim do controle alfandegário das fronteiras. Assim, para atrair investimentos, torna-se inútil reduzir tributo sobre a produção: é necessário, antes, ter uma mão-de-obra qualificada, boa infraestrutura e um bom ambiente para negócios. Há muitos artigos relacionando problemas decorrentes da aplicação do princípio do destino, principalmente no âmbito da União Europeia, mas ninguém pensa em retroceder.
No Brasil, muito tentamos, mas o ICMS só tem regredido. Temos ainda muito imposto cobrado na origem, o que motiva Estados guerreiros a incentivar sua indústria por meio de dispensa de pagamento de tributos interestaduais. A tributação na origem é a principal causa da guerra fiscal, agravada pelo pouco amadurecimento de nossas instituições democráticas.
Convivemos ainda com a expansão do Simples Nacional, que aplica alíquotas diferenciadas a contribuintes de menor porte. É fenômeno observado em diversos países, mas inexistente em países com IVA mais recente ou em países mais desenvolvidos. Do mesmo modo que a distinção de alíquota por produto não traz vantagem ao IVA, a redução de alíquota para determinados contribuintes, ainda que de menor porte, introduz complexidade que atua no sentido contrário ao ganho auferido pelo benefício.
A experiência internacional nos ensina que o imposto é melhor quanto menores forem as exceções. Logo, mesmo isenções e imunidades devem ser evitadas. Reduções de base de cálculo, diferimentos, alíquotas diversificas, além das STs, devem ser utilizadas, se forem, com extrema parcimônia.
No Brasil tomamos muitos caminhos equivocados: a proibição de créditos cobrados sobre produtos que não integram o produto, alíquota calculada por dentro, a não inclusão dos serviços em nosso IVA, a competência estadual do ICMS, o Simples Nacional, a dispersão de alíquotas, a tributação na origem (combustível da Guerra Fiscal), a Substituição Tributária, os Regimes Especiais, dentre outros. Essas anomalias estão presentes em quase todos os IVAs do mundo. O que nos diferencia é o fato de observamos todas essas anomalias em um único país. Isso é que torna urgente a correção de rumos.
Apesar de nossos problemas serem, em grande medida, nacionais, federativos, há medidas que estão na alçada da administração tributária paulista e que podem contribuir para redução do custo brasil e para o aumento da competitividade do Estado de São Paulo, que tem visto suas indústrias migrarem para outros Estados ou para outros países.
Talvez a tarefa mais difícil seja desfazer o regime de substituição tributária, ainda mais em um momento de queda de arrecadação. A ST antecipa o pagamento do imposto e seu desligamento terá, certamente, um efeito inicial negativo sobre a arrecadação. Trata-se de medida a ser tomada com planejamento e estratégia.
Em paralelo, deveria ser praticada uma política de revogação sistemática dos regimes especiais.
Entende-se o argumento de que cada contribuinte tem sua especificidade e que, por vezes, uma obrigação acessória deve ser dispensada de algum contribuinte com atividade especial. No entanto, modificações no sujeito passivo, na base de cálculo e no momento de recolhimento do imposto devem ser evitados em defesa da racionalidade do sistema.
Até mesmo o aparentemente inofensivo regime especial sobre as importações, que é o mais disseminado no Fisco Paulista, deveria ser evitado. O contribuinte paga o ICMS no momento do desembaraço para que a mercadoria importada não obtenha vantagem competitiva sobre o produto nacional. Ao autorizar o pagamento em” conta gráfica”, o fisco incentiva as importações em detrimento da produção local, por conceder às empresas beneficiadas algo equivalente a um financiamento do capital de giro. Apesar de termos nos acostumado a essas heterodoxias, elas não pertencem à estrutura de um bom IVA. E é como dizia Hooker: se o remédio para a doença é bom, que seja indistintamente aplicado. Aplicação seletiva de benefício favorece o compadrio tão presente em nossa cultura.
Se voltarmos a ter um bom imposto, o Fisco não se sentirá impotente diante do varejo, por exemplo. Além disso, a atividade de seleção de contribuintes a fiscalizar será valorizada, visto que a uniformização do imposto permite que se estabeleça distinções entre os contribuintes, valorizando, com isso, a atividade do próprio fisco.
Ainda que alguns dos defeitos de nosso ICMS só possam ser resolvidos em uma reforma mais ampla e de alcance nacional, há medidas a serem tomadas que podem contribuir positivamente para o ambiente de negócios, para a redução da sonegação e para a racionalização das atividades do fisco, como alguns exemplos citados acima. Resta saber se a nova equipe que assumirá a partir de 2015 estará disposta a fazer a dolorosa correção dos rumos ou tentará dobrar a aposta, agravando o estado de nosso ensandecido manicômio tributário.
Sei que o “novo” Governo não é assim tão novo. Mas trata-se de outra equipe. Eventualmente essa nova equipe poderá ser mais bem equipada de inteligência e racionalidade do que a anterior. Antes de tudo, é necessário bom diagnóstico e planejamento. Espero que relembrar nossos gestores de parte do que se sabe sobre o IVA os ajude nessa tarefa.
NOTA: O BLOG do AFR é um foro de debates. Não tem opinião oficial ou oficiosa sobre qualquer tema em foco.
Artigos e comentários aqui publicados são de inteira responsabilidade de seus autores.
Gustavo Theodoro
Fonte: Blog do AFR
Comentários
Postar um comentário
Compartilhando idéias e experiências sobre o cenário tributário brasileiro, com ênfase em Gestão Tributária; Tecnologia Fiscal; Contabilidade Digital; SPED e Gestão do Risco Fiscal. Autores: Edgar Madruga e Fabio Rodrigues.