A incorporação é a operação societária pela qual uma empresa (a incorporada) é absorvida completamente por outra (a incorporadora), que lhe sucede em todos os direitos e obrigações, conforme o Código Civil, artigo 1.116 e a Lei 6.404/76, artigo 227. Com a incorporação, a sociedade incorporada não se dissolve, mas se extingue, de acordo com o artigo 1.118 do Código Civil, passando o seu patrimônio a pertencer integralmente à incorporadora, que a sucede a título universal. No âmbito tributário, a incorporadora sucede a incorporada também em relação a eventuais créditos acumulados de ICMS? Advogados e consultores jurídicos possivelmente responderiam intuitivamente à indagação com uma afirmativa, mas a questão não é tão simples (conquanto não seja tampouco demasiado abstrusa, como lograremos demonstrar).
De fato, apesar de ter reforçado a regra da sucessão universal ao dispor, em seu artigo 132, que a incorporadora terá a responsabilidade pelos tributos devidos pela incorporada, o CTN não se pronunciou expressamente sobre a sucessão da incorporadora em relação aos créditos acumulados pela incorporada. Ademais, é a priori controversa a posição que considera que os créditos integram o patrimônio da empresa, pois a ela se opõe a corrente que questiona a liquidez, exigibilidade ou oponibilidade do crédito escriturado de ICMS contra a Fazenda Pública (e cuja tese principal seria, resumidamente, a de que o crédito não representa um título conversível, a qualquer tempo, em dinheiro ou equivalente).
Apesar dos obstáculos apontados, não se questiona que a incorporada tem o direito de aproveitar os créditos regularmente escriturados, respeitados os ditames legais (como, por exemplo, o prazo decadencial de cinco anos, artigo 23, parágrafo único, da LC 87/96). Assim, como na incorporação a incorporadora sucede a incorporada em todos os direitos e obrigações, não faria sentido algum que isso não abarcasse os créditos de ICMS acumulados pela incorporada.
Ademais, conquanto o CTN de fato não tenha tratado expressamente da matéria, tampouco ele vedou a sucessão em análise. Com isso, prevalece a sucessão também em relação aos créditos, seja como decorrência dos citados artigos 1.116 do Código Civil e 227 da Lei das S/A, seja por uma questão de decorrência lógica do próprio CTN, pois à responsabilidade pelos débitos (obrigações) associa-se, como contrapartida, a legitimidade dos créditos (direitos).
Foi esta segunda linha argumentativa, aliás, que os professores Igor Mauler Santiago e Raphael Frattari Bonito (As operações de fusão e incorporação de sociedades e o direito à compensação de créditos acumulados de ICMS. Jus Navigandi, Teresina, ano 2, n. 16, 20 jul. 1997) defenderam o direito a sucessão do crédito, em artigo inédito sobre a matéria, já em 1997.
Os citados professores elencam, ainda, outros fundamentos normativos de grande relevância na fundamentação do direito da incorporadora de compensar os créditos de ICMS acumulados pela incorporada, nomeadamente: a norma nuclear da capacidade contributiva (artigo 145, § 1º, da Constituição); a vedação de tributação confiscatória (artigo 150, IV, da CF), há que a fulminação dos créditos provocaria enriquecimento indevido do Erário; a própria não-cumulatividade do ICMS (artigo 155, § 2º, inciso I, da CF), já que a não realização do saldo credor oneraria a cadeia de produção e circulação de mercadorias.
Somam-se a tais considerações uma razão adicional referente à não-cumulatividade: como o regime constitucional só prevê uma única exceção à compensação de créditos (artigo 155, § 2º, inciso II, da CF), qual seja, a da isenção ou não-incidência, não pode ser juridicamente válida a invenção da incorporação como mais uma exceção a impedir que os créditos sejam aproveitados.
Ademais, a recusa da sucessão ofenderia também o princípio constitucional da legalidade (artigo 5º, inciso II e artigo 150, I, da CF), visto que inexiste norma constitucional, tampouco lei que determine que os créditos sejam simplesmente exterminados em caso de incorporação.
Na jurisprudência judicial e administrativa podem ser encontrados precedentes que reforçam a mesma conclusão da nossa breve análise da matéria. Neste sentido, o STJ entendeu: “Tanto o tributo quanto as multas a ele associadas pelo descumprimento da obrigação principal fazem parte do patrimônio (direitos e obrigações) da empresa incorporada que se transfere ao incorporador, de modo que não pode ser cingida a sua cobrança, até porque a sociedade incorporada deixa de ostentar personalidade jurídica.” (STJ, 1ª Seção, EDcl no REsp 923.012 MG, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 10/04/2013, publ. DJe 24/04/2013).
Na seara administrativa, em solução de consulta relativamente recente sobre o tema, a Fazenda do Estado de Santa Catarina lidou com situação muito semelhante. Na ocasião, defendeu que embora os créditos de ICMS não sejam créditos que regularmente compõem o patrimônio da empresa, o aproveitamento dos mesmos pela incorporadora decorre tanto da não-cumulatividade quanto da regra estadual que a obriga a assumir a responsabilidade pelos livros fiscais da incorporada (Comissão Permanente de Assuntos Tributários – COPAT, Consulta 017/2012, elaborado em 04 de abril de 2012, disponibilizado na página da SEF em 10 de maio de 12).
Em Minas Gerais, o Conselho de Contribuintes (tribunal administrativo tributário) decidiu pela improcedência de autuação que contestava créditos em cenário de sucessão empresarial por incorporação, reafirmando o alcance da sucessão universal de direitos e obrigações prevista na legislação societária: “... tanto as obrigações são transferidas para a empresa incorporadora, como também os direitos, ou seja, transferem-se ativo e passivo. Logo, a apropriação de saldo credor de ICMS existente na escrita fiscal da empresa incorporada é ato lícito e reflete o aspecto de "continuidade" das atividades da empresa incorporada.” (Câmara Especial, PTA 01.000110339-81, Acórdão 2.043/00/CE, Relatora Cláudia Campos Lopes Lara, publ. 1/4/2000).
Por sua vez, o Tribunal de Impostos e Taxas (TIT), órgão julgador administrativo máximo do Estado de São Paulo, confirmou dois lançamentos tributários tão somente diante da inexistência de comprovação da legitimidade dos créditos por parte da incorporadora — ou seja, reconhece-se a legalidade da transferência de saldo credor da incorporada para a incorporadora (Processo DRT-07 - 970116/2011, AIIM 3159122-0, j. 23/04/2012, publ. 23/04/2012; 14ª Câmara, Processo DRT-06 193685/2010, AIIM 3129026-7, j. 15/12/2010, publ. 08/01/2011).
Por fim, ainda na seara administrativa outro precedente é digno de nota. Na Bahia, uma empresa detinha benefício fiscal, e foi incorporada por outra. Houve, então, uma retificação no ato normativo que concedia o benefício, constatando a mudança de titularidade. A fruição do benefício foi considerada legítima pela 1ª Junta de Julgamento Fiscal, porque a retificação tinha efeitos meramente declaratórios, o que reforça a continuidade de direitos e obrigações entre incorporada e incorporadora, já que, se isso inclui benefícios fiscais, deve incluir também o saldo credor de ICMS em geral (1ª Junta de Julgamento Fiscal, AI 108595.0019/12-1, Acórdão JJF 0005-01/13, Rel. José Bizerra Lima Irmão, j. 10/01/2013).
Pela análise da legislação e dos precedentes sobre a matéria, é possível entender que, apesar do CTN não dispor expressamente da questão especificamente considerada, a incorporadora tem direito aos créditos acumulados pela incorporada, respeitadas as mesmas condições gerais para o seu aproveitamento, marcadamente sob os seguintes fundamentos: (i) no nível constitucional, em decorrência da não-cumulatividade, capacidade contributiva e vedação de confisco;(ii) no âmbito da legislação federal/complementar, por respeito, sobretudo, aos arts. 1116 do Código Civil e 227 da Lei das S/A e 132 do CTN; (iii) finalmente, também por decorrência de eventuais deveres jurídicos instrumentais de guarda dos livros fiscais da incorporada opostos por cada Estado.
Por Henrique Napoleão Alves e Valter de Souza Lobato
Henrique Napoleão Alves é consultor jurídico e advogado no escritório Sacha Calmon – Misabel Derzi Consultores e Advogados, professor do curso de especialização em Direito Tributário das Faculdades Milton Campos e doutorando em Direito pela UFMG.
Valter de Souza Lobato é advogado, sócio-conselheiro do escritório Sacha Calmon – Misabel Derzi Consultores e Advogados, doutor em Direito Tributário pela UFMG, professor de graduação e pós-graduação em Direito Tributário nas Faculdades Milton Campos, coordenador-adjunto do curso de especialização em Direito Tributário das Faculdades Milton Campos e presidente da Associação Brasileira de Direito Tributário (ABRADT).
Fonte: Revista Consultor Jurídico via Tributo e Direito.
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