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Estudos revelam como a corrupção prospera e funciona

Convergência ideológica tende a aumentar a tolerância dos eleitores para com políticos que praticam desvios


Para oito em cada dez brasileiros, aceitar propina no trabalho nunca é justificável. Na Suécia, seis em cada dez cidadãos pensam o mesmo. Os dados, da Pesquisa Mundial de Valores (uma rede internacional de cientistas sociais, WVS na sigla em inglês), parecem contradizer os diversos rankings de corrupção em que a posição do Brasil é sempre bem pior que a do país europeu.

Se nossa sociedade repudia com veemência práticas ilegais, a malversação de recursos públicos e privados no Brasil deveria ser baixa, certo? Afinal, segundo a literatura acadêmica, a corrupção é resultado de normas e valores de cada sociedade e, de acordo com a WVS, o brasileiro é mais crítico que a média dos 60 países pesquisados em relação a outros atos desonestos, como sonegação de impostos e gozo de benefícios indevidos.

Essa linearidade de raciocínio, contudo, não explica o intrincado fenômeno da corrupção, tema que tem mobilizado atenção de pesquisadores e que, na esteira da Operação Lava Jato, está no centro do debate político no Brasil.

Medir o tamanho da corrupção –definida como desvio de recursos públicos para ganhos privados– é impossível por um motivo simples: os casos que vêm à tona são os que deram errado; os bem-sucedidos permanecem escamoteados.

Diversos rankings internacionais tentam, portanto, fazer aferições relativas, dando uma indicação do quão corrupto é determinado país em relação a outros.

O Barômetro das Américas, feito pelo Lapop (instituto ligado à Universidade Vanderbilt, nos Estados Unidos) apresenta a cidadãos comuns perguntas sobre sua exposição direta a atos corruptos, como cobranças de propina por funcionários públicos.

Os resultados do Brasil são melhores do que os da média da região, longe dos índices alarmantes do Haiti, mas piores do que os de vizinhos como Chile e Uruguai.

“Os resultados fazem sentido se considerarmos o nível de desenvolvimento dos diferentes países da região. Vamos pior do que os países que têm instituições mais sólidas que as nossas”, diz o pesquisador Guilherme Russo, da Universidade Vanderbilt.

Um dos rankings mais conhecidos é o da ONG Transparência Internacional, que cobre um grande número de países e mede a corrupção no setor público a partir da percepção de agentes que lidam com o governo. Na última lista, divulgada em janeiro, o Brasil caiu sete degraus, para o 76° lugar, distante da 167ª posição ocupada pela Coreia do Norte, a mais corrupta das nações pesquisadas, mas quase igualmente longe da Dinamarca, a mais correta.

Críticos da metodologia da ONG ressaltam que o problema da percepção como medida é que ela pode ser influenciada por maior exposição de casos de desvio de dinheiro pela mídia.

Mas um grupo de pesquisadores mostrou com um experimento simples que os rankings parecem refletir razoavelmente a realidade. Até novembro de 2002, diplomatas estrangeiros eram isentos do pagamento de multas por estacionar em lugar proibido em Nova York, mas recebiam as notificações quando violavam a lei.

Os economistas Raymond Fisman e Edward Miguel analisaram o comportamento dos diplomatas de 146 países entre 1996 e 2002. Descobriram que os que acumularam mais multas são os de países normalmente apontados pela Transparência Internacional como os mais corruptos, e vice-versa.

Enquanto países como Suécia e Noruega não contabilizaram nenhuma multa em todo o período, outros, como Kwait e Egito, ocuparam o topo da lista com, respectivamente, 246 e 140 infrações por diplomata a cada ano. Já o Brasil ficou em 29º lugar, com uma média de 30 multas anuais por diplomata.

Se a corrupção no Brasil é mais arraigada do que na Suécia e em outros países desenvolvidos, o que explicaria o discurso formal de maior intolerância em relação a atos desonestos?

A resposta de pesquisadores é que, no caso brasileiro, parece haver uma ambivalência grande entre as crenças declaradas pela sociedade e a forma como ela age e tolera práticas corruptas.

“Os cidadãos aspiram a que os políticos sejam honestos, mas sem olhar sua própria condição caso estivessem envolvidos em uma oportunidade de se corromper”, diz o cientista político Fernando Gontijo Filgueiras, da UFMG e diretor de comunicação e pesquisa da Escola Nacional de Administração Pública.

PRIVILÉGIOS

Em um artigo sobre o tema, Filgueiras cita dados de uma pesquisa, feita em 2008 pelo Centro de Referência do Interesse Público e pelo Vox Populi, que ilustram essa ambivalência.

Os entrevistados declararam considerar “atos muito corruptos” práticas tal como o recebimento de dinheiro por políticos para favorecer empresas em licitações. Mas quase metade afirmou acreditar que “o conceito de honestidade é relativo, depende da situação”.

É por essa brecha na leitura da moralidade que entram pequenas contravenções do dia a dia do brasileiro, como a falsificação da carteira de estudante, o pulo na catraca e o recurso ao despachante para se livrar de multas de trânsito.

Segundo o economista Marcos Lisboa, presidente do Insper, a raiz do desrespeito às normas estabelecidas está na proliferação de privilégios gozados por diversos grupos que fazem do Brasil “o país da meia-entrada”, termo cunhado por ele e pela economista Zeina Latif.

“Em uma sociedade em que o privilégio discricionário é aceitável, o desvio e a corrupção são consequências naturais. Todos querem conseguir seu próprio privilégio”, diz Lisboa. A situação é agravada pelo fato de que o grau de confiança entre as pessoas no Brasil é muito baixo, um provável efeito da elevada desigualdade de renda, que resultou em uma sociedade altamente hierarquizada.

“Nós não nos consideramos como iguais, então não confiamos uns nos outros. Isso leva ao auto- interesse ilimitado”, diz o economista Marcos Fernandes Gonçalves da Silva, da FGV-SP.

Segundo a WVS, apenas 7% dos brasileiros dizem que a maioria das pessoas é digna de confiança (o equivalente a um terço da média dos 60 países pesquisados).

Já a fatia dos que acreditam que outros vão tentar tirar vantagem de você se puderem é de 24%, contra 5,4% nos Estados Unidos, 3,3% em Cingapura e 2,4% na Suécia.

A confiança nos outros é o alicerce da cooperação em prol do bem comum, uma espécie de ativo que a sociologia chama de capital social, e a economia, mais recentemente, de capital cívico.

A desconfiança generalizada facilita o descumprimento de normas estabelecidas porque a percepção de que os demais são desonestos e a lei é leniente induz a um comportamento semelhante ao imaginado.

É o que mostram os estudos de Dan Ariely, pesquisador da Universidade Duke especializado em economia do comportamento.

Experiências feitas com diversos grupos de pessoas pelo acadêmico revelam que a desonestidade desafia a simples lógica de pesar o custo (possível punição) e o benefício da infração (lucro ou vantagem).

O que mais conta no momento de transgredir as regras é a racionalização que as pessoas fazem de sua própria imagem. Elas querem manter a aparência de honestidade. Se pequenas infrações forem comuns no grupo social ao qual pertencemos, praticá-las não nos tornaria, na nossa própria autoavaliação, tão imorais.

Um dos estudos feitos por Ariely mostra que a simples exposição de um indivíduo a um pedido de propina, mesmo que ele tenha se recusado a pagá-la, o torna mais propenso a agir de forma desonesta. Esses resultados levam à conclusão de que o potencial de contágio da desonestidade é elevado. E pior: que pode aumentar a tolerância à grande corrupção. É como se as práticas ilegais se reforçassem mutuamente.

A pergunta que Ariely e muitos outros pesquisadores tentam responder é o que pode ser feito para frear essa tendência. Ela seria irreversível em sociedades com baixo capital social?

Uma das hipóteses que têm sido testadas é a de que a divulgação de informações sobre corrupção afetaria as escolhas dos eleitores. As pesquisas indicam que a informação pode aumentar, sim, a intolerância à corrupção, mas que isso nem sempre ocorre.

Estudo inédito dos pesquisadores da FGV-Rio Carlos Pereira, Lucia Barros e Rafael Goldszmidt, feito entre o primeiro e o segundo turno da eleição presidencial de 2014 no Brasil, conclui, por exemplo, que a ideologia pode ter um peso na decisão de quem vota, mesmo quando suspeitas de malversação de recursos públicos são ventiladas.

Os acadêmicos fizeram um experimento na rede social Facebook em que os participantes recebiam informações sobre dois candidatos fictícios à presidência em um segundo turno eleitoral. Com base em informações preliminares muito concisas, a vasta maioria escolheu o político mais experiente e mais bem avaliado.

Mais tarde eram avisados de que esse candidato havia sido acusado de nepotismo com prejuízo aos cofres públicos. Recebiam ainda informações adicionais sobre a ideologia do candidato, mas que, nesse caso, variavam de um grupo para outro.

Para alguns, o político era definido como economicamente liberal, para outros como defensor de intervenção estatal na economia. Para uns, era descrito como favorável a causas como descriminalização da maconha, para outros como contrário. Depois disso, os entrevistados poderiam mudar ou manter sua decisão.

Os pesquisadores notaram que a tendência à punição ao político suspeito de corrupção só ocorreu quando os valores quanto à economia e aspectos sociais de eleitores e candidato eram divergentes.

Quanto maior a convergência ideológica, maior a propensão à manutenção do voto. Embora esse efeito tenha sido significativo em todos os cruzamentos, uma nuance interessante é a de que ele foi mais intenso entre eleitores com pensamento econômico liberal.

“O que concluímos com esse estudo é que a ideologia pode cegar as pessoas a ponto de elas aceitarem a corrupção”, diz Pereira.

Ao justificar o voto no político desonesto, muitos entrevistados simplesmente relativizaram a gravidade da suspeita, mecanismo parecido ao identificado por Ariely. Quando reconheceram a seriedade do deslize cometido pelo candidato, os participantes apelaram para outro mecanismo: o argumento de que o benefício da suposta eficiência do candidato superava o custo da corrupção.

ROUBA, MAS FAZ

Embora o estudo dos pesquisadores da FGV-Rio indique que a ideologia influencia a tolerância à corrupção, restam dúvidas sobre esse processo. Outra pesquisa, feita em 2012, indica algumas delas.

Com o objetivo de aferir o impacto da informação sobre a tolerância à corrupção, os acadêmicos Miguel Figueiredo, F. Daniel Hidalgo e Yuri Kasahara aproveitaram a divulgação de uma “lista suja” de políticos pela Associação dos Magistrados Brasileiros para fazer um estudo de campo.

Escolheram a cidade de São Paulo, onde os dois concorrentes à Prefeitura –Gilberto Kassab (na época no DEM) e Marta Suplicy (então do PT)– apareciam na lista de políticos que respondiam a ações penais, de improbidade administrativa ou eleitoral.

O experimento envolveu enviar as informações sobre as denúncias contra Kassab a um grupo de eleitores, e as de Marta, a outro grupo. Um terceiro conjunto de domicílios não recebeu nada.

A conclusão foi a de que Marta perdeu votos por causa das suspeitas, mas Kassab não, embora os eleitores de ambos tenham julgado as acusações como sérias.

No experimento dos pesquisadores da FGV-Rio, a tolerância à denúncia de corrupção também foi maior entre eleitores liberais do que nos de esquerda, embora tenha sido percebida nos dois extratos ideológicos.

Por que a informação sobre possível malversação de dinheiro público teria impacto diferente em dois grupos de eleitores distintos?

Os acadêmicos responsáveis pelo estudo de São Paulo levantaram uma hipótese: que o cultivo histórico de uma imagem de moralidade pelo PT pode fazer com que seus eleitores tenham desenvolvido expectativas mais altas em relação à honestidade dos representantes do partido.

Se eles estiverem certos, será interessante observar como o comportamento dos eleitores do partido mudará após a Operação Lava Jato ter apontado envolvimento de vários políticos do PT –assim como de outros partidos– com volumosos desvios de recursos.

Mas e os eleitores mais tolerantes à corrupção? O que estaria por trás dessa inclinação? Para Figueiredo, Hidalgo e Kasahara, talvez eleitores de partidos com uma imagem associada a “rouba, mas faz” tenham, realmente, expectativas mais baixas em relação à honestidade.

A questão –relevante para o desenho de políticas de combate à corrupção– é tentar entender melhor em que contexto o maior acesso à informação funciona.

Um estudo pioneiro nessa área no Brasil, feito pelos economistas Claudio Ferraz (PUC-Rio) e Frederico Finan (Universidade da Califórnia em Berkeley), indicou que eleitores bem informados tendem a punir políticos corruptos, principalmente em municípios com presença de veículos de mídia independentes.

A pesquisa analisou os resultados eleitorais em municípios brasileiros que tinham sido selecionados aleatoriamente pela CGU (Controladoria Geral da União) para terem seus gastos feitos a partir de recursos transferidos pelo governo federal auditados.

Ferraz e Finan compararam o desempenho em urnas de políticos que tiveram problemas identificados em suas contas antes da eleição com o daqueles que também apresentaram irregularidades, mas cujos gastos foram investigados apenas após o pleito.

Concluíram que o índice de reeleição do primeiro grupo, em casos nos quais pelo menos duas violações ligadas à corrupção foram encontradas, ficou 17% abaixo que a do segundo, em situação igual. Os pesquisadores também identificaram que a presença de rádios locais que noticiaram as investigações aumentava a chance de punição dos políticos corruptos.

A contribuição dessa pesquisa ao debate foi considerada relevante porque, ao comparar situações em que a única diferença era o momento da divulgação das irregularidades –antes e depois das eleições–, os acadêmicos conseguiram isolar outros possíveis efeitos que poderiam influenciar a decisão dos eleitores.

No entanto, um estudo feito posteriormente, com estratégia parecida à empregada por Ferraz e Finan, indica resultados diferentes para municípios brasileiros que recebem volume de transferências do governo federal muito mais elevado. Nesses casos, o excesso de gastos públicos parece contrabalançar o efeito negativo das denúncias.

Os pesquisadores Fernanda Brollo, Tommaso Nannicini, Roberto Perotti e Guido Tabellini mostram que transferências federais 10% maiores aumentam os casos graves de corrupção em 16% e as chances de reeleição dos prefeitos em 6%.

Essa conclusão parece indicar que, em casos de bonança de recursos públicos, a corrupção pode ser mais facilmente aceita.

“Não interpreto isso como ‘rouba, mas faz’. Interpreto como ‘maior gasto consegue enganar o eleitor'”, diz Ferraz, da PUC-Rio.

Do ponto de vista de políticas públicas de combate à corrupção, esse conjunto de pesquisas empíricas feitas nos últimos anos apontam possíveis caminhos.

Embora o maior acesso à informação nem sempre torne os eleitores mais intolerantes a práticas desonestas, há algumas situações em que parece contribuir para isso.

O estímulo à presença de veículos de mídia criveis em locais onde grupos políticos tradicionais monopolizam a divulgação de informação pode ajudar nesse processo.

Ferraz acredita que a propagação de notícias de veículos tradicionais respeitados pelas redes sociais também é uma tendência positiva e desejável.

Segundo Pereira, da FGV-Rio, como não dá para depender apenas da punição via voto –que nem sempre ocorre em casos de maior informação–, é fundamental fortalecer os órgãos de controle.

“Acho que, nesse sentido, o Brasil tem ido na direção certa”, afirma o pesquisador.

Um terceiro caminho é o fortalecimento do capital social. Ariely, da Universidade Duke, diz que a simples estratégia de relembrar as pessoas sobre normas vigentes e, principalmente, mostrar que há quem as cumpra ajuda a combater as pequenas desonestidades presentes no cotidiano.

Como a aceitação dessas contravenções reforça a tolerância à grande corrupção, essas medidas teriam efeito duplamente positivo.

Um núcleo de economia comportamental ligado ao atual governo britânico tem feito vários experimentos bem-sucedidos nesse sentido. Em um deles, enviou cartas para contribuintes que estavam com seus impostos atrasados. Em uma versão, apenas ressaltava a importância de cumprir suas obrigações fiscais. Em outra, acrescentava que “nove em cada dez” britânicos pagam seus tributos em dia. A correspondência que enfatizava o comportamento adequado dos outros surtiu efeito 15% maior do que a outra.

“Reforçar a existência das normas e regras é fundamental. Mesmo em sociedades em que prevalece o autointeresse ilimitado, há quem cumpra a lei”, conclui Marcos Fernandes Gonçalves da Silva, da FGV-SP.

Por Érica Fraga (40) – repórter especial da Folha

Ilustração Aleksandra Waliszewska (40) – artista plástica polonesa, autora de “Problem” e “Solution” (Timeless), foi premiada melhor artista estrangeira na feira espanhola Arco em 2013.

Fonte: Folha de São Paulo via Observatório Social do Brasil

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