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Quebra do sigilo bancário pelo Fisco


Renato Aguiar de Assis
RESUMO

O presente artigo discorre sobre a quebra do sigilo bancário diretamente pelo Fisco, sem autorização judicial. Com o advento da Lei Complementar 105/2001, a Administração Tributária passou a deter esta nova prerrogativa para promover a justiça fiscal. A Era do sigilo bancário chegou ao fim.

Palavras-chave: Sigilo bancário. Acesso. Fisco.

“Pecunia non olet”

(Vespasiano)

INTRODUÇÃO

A Era do sigilo bancário, como escudo para sonegadores, está chegando ao fim.

Historicamente, contribuintes – com perfil de sonegador – dissimulavam seus ativos e suas rendas das autoridades tributárias nos paraísos fiscais (“tax havens”) e mediante o abuso no exercício do direito ao sigilo bancário, práticas econômico-financeiras (abertura de empresa “offshore”) inviabilizavam a transparência de informações para fins tributários.

A sonegação de tributos consiste num problema mundial e, como tal, requer uma solução global. Desde o encontro de cúpula do G20 (2009), há um esforço sem precedentes no sentido de se combater a evasão fiscal, a corrupção, a lavagem de dinheiro e o financiamento ao terrorismo.

Era preciso substituir velhos paradigmas em face dos novos padrões de transparência definidos pela agenda internacional. E o sigilo bancário representava uma barreira para o intercâmbio de informações em matéria tributária.

Outrora, em virtude de barreiras impostas à Fiscalização Tributária (sigilo bancário), o Brasil era penalizado nas transações comerciais internacionais, agravado pela concorrência desleal, evasão de divisas e pelo descumprimento de Cooperação Internacional para mútua troca de informações bancárias e fiscais, com graves reflexos quanto ao risco tributário na aplicação da lei fiscal.

Em sintonia com os compromissos assumidos pelo Brasil em tratados internacionais, visando dar transparência e troca de informações no combate a atos ilícitos, o Estado brasileiro adotou o padrão recomendado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE e promoveu mudanças no sigilo bancário para fins tributários (Lei Complementar 105/2001).

Neste cenário, o direito fundamental à intimidade e à privacidade (sigilo bancário) deve ceder espaço à moralidade para dar efetividade aos princípios da capacidade contributiva e da isonomia tributária, com vistas a construir uma economia mundial mais forte, limpa e justa.

LEI COMPLEMENTAR 105/2001


Com o advento da Lei Complementar 105/2001, inaugurou-se a regra de ouro para a Administração Tributária, ao franquiar o acesso da Receita a dados bancários dos contribuintes, sem necessidade de autorização judicial, nos termos de seu artigo 6º que dispõe:

“As autoridades e os agentes fiscais tributários da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios somente poderão examinar documentos, livros e registros de instituições financeiras, inclusive os referentes a contas de depósitos e aplicações financeiras, quando houver processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso e tais exames sejam considerados indispensáveis pela autoridade administrativa competente.
Parágrafo único. O resultado dos exames, as informações e os documentos a que se refere este artigo serão conservados em sigilo, observada a legislação tributária.”

Registre-se que há dois requisitos para a flexibilização do sigilo das operações financeiras pelo Fisco, em observância dos princípios da finalidade, da motivação, da proporcionalidade e do interesse público:

(1) Existência de processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso; e

(2) Imprescindibilidade dos exames contábeis pela autoridade administrativa competente.

A lei prevê, ainda, severas punições para o servidor público que vazar informações. Nessa hipótese, o responsável pelo ilícito estará sujeito à pena de reclusão, de um a quatro anos, mais multa, além de responsabilização administrativa, civil e criminal, culminando inclusive com a possibilidade de perda do cargo.

QUEBRA DO SIGILO: PROVA SUBSIDIÁRIA E EXCEPCIONAL


O acesso do Fisco aos dados bancários do contribuinte consistirá sempre numa medida excepcional e subsidiária, e somente deverá  ser determinada administrativamente mediante demonstração cabal de sua real necessidade e quando  não houver outro meio disponível (fiscal ou contábil) para se apurar os fatos supostamente sonegados pelo contribuinte, sob pena de contaminar toda a ação fiscal.

Nestas condições, o acesso aos dados bancários do contribuinte jamais será feito de forma indiscriminada; pelo contrário, sempre deverá obedecer a um rito complexo, sob a supervisão de controles internos, nos termos do art. 6º da LC nº 105/2001.

Em qualquer hipótese, a motivação para a quebra deve descrever com clareza a situação objeto da Ação Fiscal, inclusive com a indicação e qualificação dos fiscalizados (CNPJ ou CPF), salvo impossibilidade manifesta, devidamente justificada.

Os requisitos da quebra do sigilo bancário são:

– Existência de indícios relevantes de infração à lei tributária; e

– Prova da imprescindibilidade dos dados bancários.



RITO ADMINISTRATIVO PARA QUEBRA DO SIGILO BANCÁRIO


A Secretaria da Receita Federal do Brasil estabeleceu um método trifásico para autorizar a quebra do sigilo bancário:

I – Quando exista procedimento de fiscalização em curso, instaurado mediante outorga de Mandado de Procedimento Fiscal – Fiscalização (MPF-F);

II – tenha sido constatada hipótese de indispensabilidade, prevista no art. 3º do Decreto nº 3.724/2001 (“numerus clausus”);

III – tenha havido intimação para apresentar as informações sobre sua movimentação financeira.

Concluída a auditoria, os documentos arrecadados durante a ação fiscal (extratos bancários) que não servirem como prova do ilícito fiscal, serão inutilizados, sob pena funcional do auditor fiscal. Na histórica decisão do STF sobre a inoponibilidade do sigilo bancário para as Administrações Tributárias, enfatizou-se a necessidade dos Estados, Distrito Federal e Municípios regulamentarem a Lei Complementar 105/2001, através de Decretos do Executivo local, a exemplo como fez a União através do Decreto 3.724/2001, assegurando as seguintes garantias:

I) Necessidade de processo administrativo instaurado (ordem de serviço aberta);
II) Pertinência temática entre a obtenção das informações bancárias e o tributo objeto de cobrança no procedimento administrativo instaurado;
III) Prévia notificação do contribuinte quanto à instauração do processo e a todos os demais atos;

IV) Sujeição do pedido de acesso a um superior hierárquico;
V) Existência de sistemas eletrônicos de segurança que sejam certificados e com registro de acesso do preposto fiscal e estabelecimento de instrumentos efetivos de apuração e correção de desvios.
O pedido de requisição de movimentação financeira somente será encaminhado quando diagnosticadas inconsistências, não havendo, pois, lugar para casuísmos. O auditor-fiscal, responsável pelo roteiro de auditoria, conservará o sigilo, sob pena de responder administrativamente (corregedoria), civil (dano material e moral) e criminal (violação de sigilo), podendo inclusive estar sujeito à perda do cargo público.



COLISÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS: FISCO X INTIMIDADE


No “leading case” relativo ao sigilo bancário, não há que se falar em colisão real entre direitos fundamentais, mas tão-somente de conflito aparente entre o direito individual (Intimidade/Privacidade) e o interesse público (Fisco).

O Supremo Tribunal Federal entendeu que inexiste violação a direito fundamental, visto que a lei não permite a quebra de sigilo bancário, mas admite somente a transferência desse sigilo dos bancos para a Administração Tributária (sigilo fiscal).

O relator do caso, ministro Toffoli, declarou que “a afronta à garantia do sigilo bancário não ocorre com o simples acesso aos dados bancários dos contribuintes, mas sim com a eventual circulação desses dados”.

Para o ministro Fachin “o caráter não absoluto do sigilo bancário, que deve ceder espaço ao princípio da moralidade, nas hipóteses em que transações bancárias denotem ilicitudes”. O ministro também destacou que “a lei está em sintonia com os compromissos assumidos pelo Brasil em tratados internacionais que buscam dar transparência e permitir a troca de informações na área tributária, para combater atos ilícitos como lavagem de dinheiro e evasão de divisas”.



RELEVÂNCIA DOS DADOS BANCÁRIOS PARA A ADMINISTRAÇÃO TRIBUTÁRIA


A Auditoria Fiscal, por meio de legítima atividade fiscalizatória, não pode ficar refém da declaração unilateral dos contribuintes, sem que possa efetivamente averiguar sua capacidade contributiva. Este postulado só será efetivo desde que haja identificação do patrimônio, dos rendimentos e das atividades econômicas do contribuinte pela administração tributária.

Ao longo do tempo, o Fisco afastou-se do momento da ocorrência do fato gerador do tributo. Senão, vejamos:

Outrora, o lançamento tributário consistia – em regra – “por declaração ou misto”, previsto no art. 147 do CTN (Lei 5.172/66), com base na declaração do sujeito passivo ou de terceiro, quando presta à autoridade administrativa informações sobre matéria de fato, indispensáveis à sua efetivação. A Fazenda Pública atua com prévio exame na formalização do crédito tributário.

Na atualidade, vigora o lançamento “por homologação” (art. 150, § 4º, do CTN) cujo tributo a legislação atribua ao contribuinte o dever de antecipar o pagamento sem prévio exame da autoridade administrativa realizado pelo ato em que a referida autoridade, tomando conhecimento da atividade assim exercida pelo obrigado, expressamente a homologa.

Nestas condições, é imprescindível o cruzamento de informações financeiras dos contribuintes e as informações armazenadas pelo Estado, visando identificar possíveis indícios de descumprimento da legislação tributária (omissão de receita…), sendo um dos principais responsáveis pela queda da sonegação, o que confirma – por si só – a sua imprescindibilidade.

Segundo dados da Receita Federal, “nos últimos dez anos-calendários o valor de crédito tributário recuperado pela RFB em procedimentos fiscais em que os sujeitos passivos se negaram a prestar esclarecimentos e que, observados os requisitos objetivos e procedimentais, foi imprescindível a emissão da Requisição de Informações sobre Movimentação Financeira, superam R$ 94,7 bilhões.

Destaque-se que numa situação de auditoria fiscal, mais da metade dos contribuintes identificados com indícios de sonegação fiscal por movimentação financeira incompatível se negaram a prestar informações à RFB. Foi diante dessa situação de recusa que a única forma viável de identificar a ocorrência do fato gerador da obrigação tributária foi requisitando as informações diretamente às instituições financeiras” (Nota Executiva da Receita Federal, item III, 12.4).

Esse auspicioso resultado da ação fiscal somente foi possível devido à transferência do sigilo bancário para a Fazenda Pública contida na LC 105/2001. 

DIREITO COMPARADO


As tendências da Governança Global são em prol do acesso direto de dados bancários pelo Fisco.

Neste cenário, o G-20 (19 maiores economias do mundo + União Europeia) através do Fórum Global sobre Transparência e Troca de Informações para Efeitos Fiscais, reconheceu a necessidade de enfrentar a evasão fiscal internacional, combater os escândalos financeiros visando cumprir os rigorosos padrões de intercâmbio de informações, em matéria tributária. O Brasil faz parte desse esforço mundial para coibir a evasão de impostos.

O Fórum Global, conduzido pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômicos-OCDE, reconhece que setenta países permitem o acesso pelo Fisco a informações bancárias sem autorização judicial, para fins de intercâmbio de informações. Ao mesmo tempo, somente dezoito países conhecidos como paraísos fiscais (“tax havens”), exigem autorização judicial para acesso a informações, tais como: Luxemburgo, Qatar, Brunei, Uruguai, dentre outros.

A comunidade internacional flexibilizou o sigilo das operações financeiras, autorizando o acesso da Receita aos dados bancários. A título exemplificativo, tome-se o caso da Alemanha, França, Itália, Finlândia, Noruega, dentre outras nações. Os Estados Unidos da América, a seu turno, exigem que qualquer transação bancária acima de U$ 10 mil deve ser automaticamente comunicada às autoridades tributárias (Internal Revenue Service-IRS), nos termos do direito à privacidade financeira (Rights to Financial Privacy Act). Os EUA também editaram a lei de Práticas de Corrupção no Exterior (FCPA), com jurisdição extraterritorial (dentro e fora dos EUA), em 1977, após revelações de corrupção global e generalizada, na sequência do Escândalo político de Watergate. Esta norma é extremamente importante para o combate à corrupção e sonegação ao redor do mundo



JURISPRUDÊNCIA


Após quinze anos, desde a edição da LC 105/2001, finalmente o Supremo Tribunal Federal- STF concluiu o julgamento sobre a permissão de acesso aos dados bancários de contribuinte pela Autoridade Fiscal sem autorização judicial. Prevaleceu o entendimento de que a norma não resulta em quebra de sigilo bancário, mas sim em transferência de sigilo da órbita bancária para a fiscal, ambas protegidas contra o acesso de terceiros.

O tema foi objeto de julgamento no Supremo Tribunal Federal (RE 601314), com repercussão geral reconhecida, e em quatro Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) que também contestavam a flexibilização do sigilo das operações financeiras diretamente pela Fiscalização Tributária.

Ajuizadas por partidos políticos, confederações patronais e OAB (amicus curiae), as ações sustentam que o dispositivo é inconstitucional por violação ao artigo 5º, incisos X (princípio da inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas) e XII (princípio da inviolabilidade do sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas), da Constituição Federal.

Por outro lado, a tese da constitucionalidade (PGFN, AGU, PGR) destacou que, em nenhum momento, a LC 105/2001 permite a quebra de sigilo bancário, mas sim a transferência do dever de sigilo (que já detém) responsabilidade sobre o sigilo fiscal.

Inexiste ofensa à Constituição Federal, tendo em vista que a transferência de informações é feita dos bancos ao Fisco, que tem o dever de preservar o sigilo dos dados.

Esta decisão histórica da Suprema Corte servirá de paradigma para o fim da impunidade dos sonegadores, pois o mérito da questão e a decisão proveniente dessa análise será aplicada posteriormente pelas instâncias inferiores, em casos similares.



CONSIDERAÇÕES FINAIS


O cenário internacional não comporta mais o sigilo bancário para fins de tributação, pois a base tributária da economia mundial está sendo corroída pelo impacto negativo da evasão fiscal, com graves prejuízos para as receitas públicas em tempos de restrição fiscal (redução de serviços públicos com aumento da carga tributária).

Em contrapartida, há uma revolução silenciosa em curso voltada para o combate à criminalidade econômica proporcionada pelos paraísos fiscais (“tax havens”) que não se interessa em promover o livre acesso a informações bancárias para fins tributários, bem como garantir que os sonegadores não tenham refúgio fiscal para dissimular os seus ativos, a fim de que possam recolher corretamente seus impostos na jurisdição em que ocorreu o fato gerador do imposto.

Para coibir essa prática abusiva é imperioso que a Fiscalização Tributária identifique o patrimônio e a renda dos contribuintes, de forma sigilosa, pontual e célere em relação aos sujeitos passivos da obrigação tributária que, muitas vezes, agem sutilmente para sonegar tributos, sob pena de blindar o sonegador contumaz. Em razão disto, o Brasil se comprometeu perante o G20 e o Fórum Global a adotar o acesso automático aos dados bancários dos contribuintes por sua administração tributária.

Sob a perspectiva do fim do sigilo bancário para o Fisco, grandes contribuintes (pessoas físicas e jurídicas) aderiram à repatriação de ativos mantidos no exterior ilegalmente (RERCT), recurso financeiro essencial para o Governo fechar as contas, aliviando a sua situação fiscal.

Enfim, o direito ao sigilo bancário não é absoluto nem um fim em si mesmo; necessita, pois, ceder espaço à atuação da administração tributária que, na defesa do interesse público, se empenha em enfrentar expressivos delitos que atingem a sociedade, visando implantar – com isso – a justiça tributária.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


Lei Complementar 105/2001 (Sigilo das operações de instituições financeiras).



Decreto 4489/2002 (Regulamenta o art. 5º da Lei Complementar nº 105/2001).



Lei 13.254/2016 (Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária – RERCT).



Instrução Normativa RFB nº 1.627/2016  (Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária- RERCT).



Fórum Global sobre Transparência e Troca de Informações para Efeitos Fiscais.



Nota Executiva da Receita Federal sobre o julgamento da constitucionalidade da Lei Complementar 105/2001 (acesso a dados bancários pelo Fisco).

http://idg.receita.fazenda.gov.br/noticias/ascom/2016/fevereiro/arquivos-e-imagens/nota-executiva-sigilo-bancario.pdf



O intocável (por Vladimir Aras).


Sigilo Bancário e sua oponibilidade para o Fisco (Brasília, fevereiro de 2016).

http://idg.receita.fazenda.gov.br/noticias/ascom/2016/fevereiro/arquivos-e-imagens/apresentacao-sigilo-bancario-lc-105.pdf

Como citar este artigo:

ASSIS, Renato Aguiar. Quebra do sigilo bancário pelo Fisco. Salvador: Instituto dos Auditores Fiscais do Estado da Bahia-IAF, outubro, 2016. Disponível em <www.iaf.org.br>

Renato Aguiar de Assis

Auditor Fiscal do Estado da Bahia, ex-Analista de Finanças do Tesouro Nacional (Brasília) – graduado em Direito (UDF) e em Ciências Contábeis (UnB) – Especialista em Direito Público (UnP). E-mail: renatoa@sefaz.ba.gov.br

Fonte: IAF

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