O Estado brasileiro passa por um processo de deterioração fiscal que tem componentes de curto e longo prazo. No curto prazo observa-se a queda dos resultados primários do setor público, que passaram de 3,8% do PIB em 2008 para 1,9% em 2013. Há, também, uma deterioração na qualidade deste superávit e das contas públicas, em que procedimentos contábeis pouco usuais têm sido utilizados com o intuito de mascarar parte da deterioração fiscal (sobre tal ponto ver, neste site, “O que é contabilidade criativa?”).
É forçoso, contudo, reconhecer que, mesmo quando o setor público apresentava superávits primários robustos e contabilidade mais clara, a qualidade da nossa política fiscal já não era das melhores. Ano após ano a despesa total cresce e, com ela, a carga tributária. A despesa primária do governo central pulou de 14% do PIB para 19% do PIB entre 1997 e 20131, e a carga tributária nos três níveis de governo saltou de 28% para 34% do PIB no mesmo período2. Os superávits primários têm sido feitos não apenas por meio de aumento de tributos, que sufocam os contribuintes e desestimulam o crescimento econômico, mas também com base em repressão dos investimentos públicos, tornando a infraestrutura do país precária. Este é o componente de deterioração de longo prazo da política fiscal.
O processo orçamentário se dá de uma forma em que os poderes Executivo e Legislativo têm interesse em fixar receitas superestimadas e despesas elevadas. O Executivo o faz porque, dispondo do poder de contingenciar gastos, pode escolher quais despesas executará ou não. Assim, quanto mais amplo o espectro de despesas disponíveis, mais espaço tem para distorcer o orçamento a favor de suas prioridades. Já o legislativo tem interesse em ampliar as despesas para encaixar os gastos de interesse dos parlamentares e de suas bases. O controle fiscal se faz na boca do caixa, sem transparência ou ordenamento de prioridades sociais.
No campo da qualidade do gasto público, inexiste no país a prática de se avaliar benefícios e custos gerados pelos programas patrocinados pelo governo. Os programas são postos em prática, o gasto se eleva ano após ano, mas pouco se avalia se eles constituem benefício para a sociedade como um todo ou apenas mais uma fonte de renda para grupos específicos com poder de pressão política. Os investimentos públicos não passam por planejamento cuidadoso, sua execução usualmente estoura os orçamentos prévios e, depois de prontos, têm manutenção deficiente, o que reduz a vida útil de estradas, portos e equipamentos urbanos (mais sobre isso, em outro texto neste site: “Por que é importante investir em infraestrutura?”).
Não será simples corrigir todas essas distorções. Um caminho promissor, contudo, pode ser a criação de uma “instituição fiscal independente” ou “conselho fiscal” – doravante chamados de IFI – nos moldes de instituições que já funcionam em vários países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). A mais famosa dessas instituições é o Congressional Budget Office (CBO) dos Estados Unidos. Mas há também o Office for Budget Responsibility (OBR) no Reino Unido, o Conselho de Finanças Pública (CFP) em Portugal e mais outras vinte e seis instituições similares em países tão distintos entre si quanto Quênia e Coréia do Sul. A expansão desses órgãos ganhou impulso especialmente na Zona do Euro, com a necessidade de promover ajustes fiscais estruturais após a crise de 2008, que afetou fortemente a Europa.
Tais instituições são órgãos de Estado, com estrutura similar a de agências reguladoras (dirigentes com formação técnica, com mandatos predefinidos e protegidos de pressões políticas). Sua função é a de ser uma espécie de cão de guarda da estabilidade fiscal e da qualidade do gasto público. Devem fazer análises técnicas isentas, tornando-as públicas, buscando dar o máximo de transparência possível a suas avaliações.
Certamente uma agência com essa natureza ajudaria a melhorar a qualidade da política fiscal no Brasil, pois atuaria sobre pontos críticos que precisam ser aperfeiçoados. Em primeiro lugar, poderia fazer estimativas independentes da receita orçamentária, que colocaria em xeque as estimativas usualmente superestimadas feitas pelo Executivo e o Legislativo. Estes teriam que, no mínimo, explicar porque suas receitas esperadas estariam acima daquela estimada pela IFI. Não conseguindo fazê-lo, seriam forçados a moderar a fixação da despesa orçamentária.
A IFI também poderia atuar avaliando a qualidade de políticas públicas. Estudos de custo-benefício, que requerem grande quantidade de informações e alta especialização técnica para que sejam bem feitos, poderiam indicar à sociedade quais são os programas públicos que merecem ter continuidade e quais deveriam ser extintos por trazerem mais custos que benefícios.
Isso permitiria não apenas melhorar a qualidade do gasto público, introduzindo no país uma cultura de avaliação dos gastos, como também permitiria conter a expansão do gasto agregado. Menor carga tributária seria necessária para dar conta de despesas em menor nível. As avaliações de custos e benefícios poderiam ser feitas, inclusive, antes de os projetos serem postos em prática, por meio de avaliação de impacto de proposições em tramitação no Congresso que visem instituir novos gastos, conceder isenções tributárias ou outros tratamentos preferenciais a grupos específicos.
Outra área de relevante atuação desta instituição independente seria na fixação de critérios contábeis de alta qualidade, o que deixaria explícito os casos em que os governos estariam tentando iludir a população com o uso de contabilidade criativa.
É importante notar que a criação de uma IFI não significa retirar do Executivo e do Legislativo o poder para programar e executar a política fiscal. Não se trata de aplicar, na área fiscal, princípio similar ao de independência do Banco Central, pelo qual o governo amarra suas mãos e dá à autoridade monetária o poder para gerir a oferta de moeda à sociedade. A política fiscal não pode ser executada dessa forma, pois ela é a essência da atividade de governar. O que a instituição fiscal independente deve fazer é, como dito acima, funcionar como um “cão de guarda” das finanças públicas, apontando excessos, ineficiências e distorções; oferecendo parâmetros para avaliar a trajetória de longo prazo da política fiscal; estabelecendo critérios contábeis lastreados na transparência das contas públicas.
Ela deve usar a sua comunicação com o público, em especial com a imprensa, para divulgar o que se espera do governo em termos de adoção de boas práticas fiscais. Deve explicitar custos e benefícios dos programas públicos. Mas jamais deve determinar o corte ou expansão desta ou daquela despesa, a interrupção deste ou daquele programa.
Não se deve confundir, também, a ação de uma instituição fiscal independente com a de instituições voltadas à auditoria e controle, como os tribunais de contas. Estes atuam avaliando o passado, estudando o resultado de programas em andamento ou já encerrados, aprovando ou rejeitando as contas públicas. As instituições fiscais independentes atuam olhando para o futuro: avaliam os prováveis cenários para a receita e a despesa, estudam benefícios e custos de programas visando seu aperfeiçoamento, definem critérios de qualidade para a contabilidade pública.
O Brasil já tem, na Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), um embrião de instituição fiscal independente. Trata-se do Conselho de Gestão Fiscal (CGF), instituído pelo art. 67 daquela Lei. Todavia, o CGF não foi instituído até hoje.
Tal demora deve-se a dificuldades envolvidas na regulamentação. Isso porque a LRF exige que o CGF tenha representantes de todos os poderes, em todos os níveis de governo, além de representantes de entidades técnicas da sociedade civil. Surgem aí alguns problemas práticos e algumas incongruências com a ideia de entidade independente. Em primeiro lugar, o CGF teria número excessivo de representantes, dificultando a obtenção de quorum e o processo decisório. Em segundo lugar, a participação de membros do poder público, eles próprios executores de políticas que seriam avaliadas pelo conselho, reduziria o grau de independência e imparcialidade nas avaliações feitas pela entidade. Em terceiro lugar, é muito difícil estabelecer critérios práticos para se escolher, por exemplo, quem seria o representante de todos os legislativos municipais do país, Como fazê-lo? Uma eleição na qual votariam todos os vereadores do Brasil? Dificuldade similar surgiria para escolher o representante dos judiciários estaduais ou para definir quais seriam as entidades da sociedade civil contempladas com o direito de participar do CGF.
Para que o CGF pudesse ser convertido em uma verdadeira instituição fiscal independente, seria necessário alterar a LRF com vistas a dar ao Conselho um perfil similar ao das agências reguladoras: nomeação de um pequeno número de diretores, com perfil técnico, evitando-se dar representação a entidades, órgãos governamentais ou poderes públicos. Deve-se, ademais, prover a entidade com equipe técnica qualificada e abrir a possibilidade de atuar em conjunto com universidades e outras instituições capacitadas para fazer as análises que se espera de uma IFI.
Este seria um grande passo no sentido de se mudar o perfil expansionista de nossa política fiscal, de melhorar a qualidade da intervenção do governo na economia e, com isso, elevar o potencial de crescimento do país.
Já há evidências empíricas de que as IFI têm efeito concreto. Um estudo do FMI3 mostra que países com IFI que atendem a alguns requisitos básicos apresentam desempenho fiscal mais sólido e orçamentos mais realistas. Esses requisitos são: ter independência operacional, realizaranálise de projeções fiscais, estar presente na mídia e monitorar metas fiscais.
O Brasil, sem dúvida, carece de um aperfeiçoamento institucional dessa natureza. O que não falta é literatura sobre o tema, conforme lista apresentada abaixo, e possibilidade de assistência técnica por parte do FMI, da OCDE e das próprias IFI já em funcionamento.
Para ler mais sobre o tema:
Bos, F., Teulings, C. CPB and Dutch fiscal policy in view of the financial crisis and ageing. http://www.cpb.nl/en/publication/cpb-and-dutch-fiscal-policy-view-financial-crisis-and-ageing
Calmfors, L. (2010) The swedish fiscal policy council – experience and lessons. http://people.su.se/~calmf/Wipol_2011_Calmfors.pdf
Calmfors, L., Kopits, G., Teulings, C. (2010) A new breed of fiscal watchdogs. EVRO Inteligence. http://www.finanspolitiskaradet.se/download/18.55431e1f13f86263d6a1c5a/1377195290368/Calmfors,+Kopits+%26+Teulings+(2010).pdf
Debrun, X. (2011) Democratic accountability, deficit bias, and independent fiscal agencies. FMI – Working Paper WP/11/173.
Debrun, X., Kinda, T. (2014) Strengthening post-crisis fiscal credibility: fiscal councils on the rise – a new dataset. FMI – Working Paper WP/14/58.
Eichengreen, B., Hausmann, R., von Hagen, J. (1999) Reforming budgetary institutions in Latin America: the case for a National Fiscal Council. Open Economies Review, 10: 415-442.
FMI (2013) The functions and impacts of fiscal councils. http://www.imf.org/external/np/pp/eng/2013/071613.pdf
Hagemann, R. (2011) How can fiscal councils strengthen fiscal performance? OECD Journal: economic studies, vol. 2011/1, http://dx.doi.org/10.1787/19952856
Kopits, G. (2011) Independent fiscal institutions: developing good practices. 3rd Annual Meeting of OECD Parliamentary Budget Officials – Estocolmo, Suécia.
Marinheiro, C.F. (2011) Fiscal sustainability and the accuracy of macroeconomic forecasts: do supranational forecasts rather than government forecasts make a difference? International Journal of Sustainanble Economy, v. 3, n. 2
OCDE (2013) OECD principles for independent fiscal institutions.
Szpringer, Z. (2013) A parliamentary view of Poland’s plans to enhance the role of existing institutions in place of establishing an independent fiscal institution. Mimeo – Varsóvia, Polônia.
http://www.pbo-dpb.gc.ca/files/files/D1-AM%20-%20Roundtable%20-%20Zofia%20Szpringer%20-%20POLAND.pdf
_______________
1 Fonte: Secretaria do Tesouro Nacional
2 Fonte: Receita Federal do Brasil
3“Strenghening Post-Crisis Fiscal Credibility: Fiscal Councils on the Rise – A New Dataset”, de Xavier Debrun e Tidiane Kinda.
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Fonte: Brasil Economia e Governo
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